08/05/2018 - Organizações e relações institucionais que foram surgindo a partir dos anos 80 foram os primeiros fios da intrincada rede para a criação de políticas públicas para proteger as espécies marinhas no país. Leia mais. ↓
Gilberto Sales
Oceanólogo, Doutor em Administração e analista ambiental do Centro Tamar/ICMBio
No artigo anterior falávamos a respeito de como nasce e se desenvolve uma política pública na perspectiva das espécies marinhas, neste caso tubarões e tartarugas. Seguindo as relações de explotação e proteção como principais motivações para este movimento, a construção de organizações e relações institucionais que foram surgindo a partir dos anos 80 foram os primeiros fios da intrincada rede que foi sendo tecida ao longo do tempo para conhecer e proteger as espécies marinhas no Brasil.
Quem observar na atualidade as políticas nacionais direcionadas à proteção das tartarugas marinhas, da qual o Projeto Tamar é o maior expoente, pode achar que isso “sempre existiu”, ou foi surgindo “naturalmente” por decorrência das obrigações legais, das normas ou compromissos internacionais. O mesmo aconteceria ao observar o trabalho cada vez mais consistente da SBEEL (Sociedade Brasileira de Estudo dos Elamosbrânquios), e outras instituições a ela vinculadas, voltado à conservação de tubarões e raias.
Esta percepção, embora possível, não representa fielmente a realidade. Afinal, o próprio surgimento das normas e dos compromissos nacionais e internacionais também foi fruto de movimentos de grupos formais ou informais que trabalharam incessantemente para sua existência.
Tomando novamente como guia as relações estabelecidas entre humanos e esses grupos de animais não humanos, lembramos que, de consumidores, classificadores e pesquisadores, a protetores dessas espécies, o que houve ao longo do tempo foi um aumento gradativo do conhecimento a respeito desses animais e dos tipos de problemas que os afetavam e ainda os afetam, seja com vistas à sua sobrevivência como espécies, seja com olhos na sua exploração econômica como recurso pesqueiro.
Para tubarões e tartarugas marinhas, esse processo passou por histórias semelhantes, incluindo estruturas institucionais pioneiras que formaram especialistas nacionais direcionados a estudar esses fantásticos animais, como exemplos podemos destacar o Instituto Oceanográfico da USP/SP, o Museu Oceanográfico e o curso de Oceanologia de FURG em Rio Grande/RS, e os cursos de Engenharia de Pesca de UFRPE, no Recife/PE, o Instituto de Ciências do Mar (1960) da Universidade Federal do Ceará (UFC), transformado em LABOMAR - Laboratório de Ciências do Mar (1969), em Fortaleza/CE.
Todas essas entidades de ensino e pesquisa, a partir da década de 70, foram fundamentais na formação da grande maioria dos profissionais que passaram a estudar essas espécies e a decifrar sua biologia, suas complexas estratégias de vida e suas ameaças.
Embora esses movimentos tenham seguido muito próximos, os esforços dos pioneiros nesse caminho acabaram por revelar algumas diferenças quanto ao tempo decorrido para perceber a necessidade de controlar algumas atividades humanas que levavam essas espécies a demandar atenção por parte do Estado. Neste aspecto, o fato de saírem na água e se utilizarem das praias para depositar seus ovos, fez com que as tartarugas marinhas fossem mais visíveis aos olhos da ciência quanto a sua fragilidade como grupo vulnerável à intensa predação humana nas áreas de desova.
Mostra disso foi o surgimento das primeiros esforços à proteção das tartarugas marinhas ainda na década de 40, com o trabalho pioneiro do naturalista capixaba Augusto Ruschi, que, ao descrever e estudar os ecossistemas costeiros do litoral do Espírito Santo, publicou em 1949 a primeira lista de fauna ameaçada de extinção no Brasil e incluiu a Tartaruga de Pente e a Tartaruga de Couro.
Porém, foi principalmente mais adiante, na década de 70, nos primórdios do que viria a ser o Projeto Tamar, que o trabalho combinado de ciência e estruturas institucionais do governo federal passaram a dar frutos. Exemplos disso são a Portaria SUDEPE n° 18 de 1976, proibindo a captura de tartarugas marinhas (com exceção de Chelonia mydas e Caretta caretta), e a criação da primeira Unidade de Conservação marinha do País, a Reserva Biológica do Atol das Rocas, decretada em 1979 pelo Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal - IBDF, que dentre seus objetivos consta a proteção de importante área de desova da Tartaruga Verde.
Os tubarões e raias, por sua vez, passaram a atrair atenção quanto a possíveis problemas de conservação somente nas década de 90, quando a pesquisa direcionada a recursos pesqueiros foi sendo priorizada por estruturas de ensino e iniciativas institucionais de vários tipos. Exemplos marcantes deste movimento foi o desenvolvimento do REVIZEE - Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos da Zona Econômica Exclusiva no ano de 1994, por parte do Ministério do Meio Ambiente, e a criação da SBEEL - Sociedade Brasileira para o Estudo de Elasmobrânquios em 1995. O crescimento do conhecimento a respeito dessas espécies e sua vulnerabilidade deu origem à publicação do Plano de Ação Internacional para a Conservação de Tubarões da FAO e no Brasil da primeira normativa anti-"finning" (retirada das barbatanas dos tubarões sem aproveitamento de suas carcaças), ambos em 1998.
Seja nacionalmente, seja em escala internacional, para a conservação de espécies vale a máxima que diz: “só se protege aquilo que se conhece”. Neste caso, o comportamento de desovar nas praias parece ter sido fundamental para que tartarugas marinhas fossem consideradas como prioridade de atenção para sua conservação, num primeiro momento, quando comparadas ao que sucedeu aos tubarões.
Para isso, tiveram papel fundamental os registros fotográficos e documentais realizados entre os anos 70 e 80 pelos precursores do que viria a ser o Projeto Tamar, atuando como ponte entre ciência e gestão, entre universidades e órgãos do governo responsáveis pela conservação da biodiversidade, que, inclusive, “naquele tempo”, nem tinha este nome, era denominada de fauna e flora silvestres.
O conhecimento gerado e disponibilizado na forma de alertas quanto à necessidade de controle de ações humanas que afetam as populações dessas espécies, paulatinamente foram sendo conhecidos, compreendidos e incorporados pelas estruturas institucionais como algo importante, a ponto de serem levados em conta na estrutura legal direcionada a limitar a ação antropogênica que ofereça risco importante para a sobrevivência dessas espécies ao longo do tempo. Daí surgem as tais portarias, instruções normativas e decretos, incluindo aqueles que criam as estruturas institucionais.
Em outras palavras, normas não surgem espontaneamente. Ao contrário, elas são geradas como uma das etapas de processos de discussão de situações de conflito de interesses entre humanos e seus diferentes interesses, ou entre esses e a natureza. Para que os conflitos venham à tona e sejam considerados como objeto de atenção por parte do estado e da sociedade, esses conflitos têm de ser destacados como importantes ou prioritários.
Na teoria, este fenômeno de surgimento da percepção de determinados problemas é o que se denomina de “agenda política”. Ou seja, um problema tem de primeiramente descrito e em seguida ser alçado a um certo grau de importância que justifique entrar na pauta de políticas prioritárias em determinado contexto histórico. Mas este é outro tema e será tratado na próxima edição.
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